Emoções, ideias, medos, desejos… e tantos outros aspectos da nossa vida que nos caracterizam como seres humanos derivam das complexíssimas operações do nosso cérebro. De seguida é apresentado um excerto do livro “A Alma está no Cérebro” do escritor espanhol Eduardo Punset que esclarecerá algumas das questões que habitualmente colocamos.
À primeira vista, parece bastante fácil distinguir o que é e onde está a alma. Para começar, alguns animais nem sequer se reconhecem a si mesmos em frente de um espelho. Outros, como os chimpanzés, tal como nós, reconhecem-se e têm consciência de si mesmos. Nós, os seres humanos, possuímos imaginação, emoções e memória: eram estas, segundo o pensamento antigo, as três faculdades da alma.
Mas... onde é que está a alma? Onde é que ela está albergada? Alguns filósofos e teólogos pensavam que a alma estava no coração, e outros, entre eles os primeiros grandes cientistas, opinavam que a alma residia no cérebro. De modo que, ao que parece, a alma fez-se carne.
No entanto, será que com esta simples identificação fica verdadeiramente resolvido o mistério da alma?
A nossa mente é aquilo que somos. Recordações, emoções e experiências acumulam-se no cérebro incrustando-se nas ligações electroquímicas estabelecidas entre os milhões de neurónios que ele contém. A alma ou a psique cabem no pouco mais de quilograma e meio de tecido cerebral, o mesmo que o filósofo Henry More descrevia como «essa desestruturada, gelatinosa e inútil substância». Quase todos os seus colegas pensavam como ele. O que não era invulgar.
Na Inglaterra de meados do século XVII, a alma era um princípio imortal e imaterial que pensa, que sente e que rege o corpo; o cérebro, pelo contrário, parecia uma glândula de aspecto desagradável e de irritante inutilidade. Nesse período da história, alguém inventou a palavra «neurologia». Thomas Willis (1621-1675), juntamente com um grupo de sábios, inaugurou uma nova era: a «era neurocêntrica», na qual nos encontramos hoje, onde o cérebro e a mente são dois conceitos inseparáveis.
Willis estudou ao pormenor a estrutura cerebral e propôs uma nova concepção da mente: para ele, pensamentos e emoções eram tempestades de átomos que ocorriam no cérebro. De alguma maneira, abriu o caminho teórico que haveria de conduzir, vários séculos depois, à descoberta dos neurotransmissores. Se Descartes estava equivocado, se não havia espírito e tudo era matéria, os males da alma seriam necessariamente físicos. Willis propôs então que as perturbações mentais, como a depressão, podiam ser curadas com substâncias químicas e preparados farmacêuticos capazes de restabelecer o equilíbrio do fluido nervoso. Hoje, os fármacos contra a ansiedade ou a depressão, a timidez ou a hiperactividade fazem já parte da nossa cultura.
Formalmente, as teorias de Willis seriam mais parecidas com a alquimia do que com a ciência moderna, porém, é inegável que ele deu os primeiros passos que conduziriam às concepções de «mente» e de «cérebro» que hoje possuímos. Willis inaugurou, há mais de três séculos, a nossa era: a era do cérebro.
Carl Zimmer é um divulgador científico bem conhecido; escreve regularmente nas páginas científicas do New York Times e está a começar a destacar-se como um dos melhores ensaístas no campo da história da neuroanatomia.
Para começar, os paleontólogos asseguram que a ideia da alma parece ser um conceito tardio em relação a outras ideias, como por exemplo a necessidade de fabricar ferramentas. No entanto, é incrível a persistência da ideia de alma, que desde o seu «descobrimento» nunca foi abandonada. De onde nasceu esta ideia? Zimmer assegura que a ideia de alma, ou de algo parecido à alma, surgiu provavelmente há muito tempo, talvez há um milhão de anos, ou há umas quantas centenas de milhares de anos. A ideia de alma evoluiu com o homem e submeteu-se às leis que correspondem aos nossos conceitos, uma ideia à qual aplicámos as nossas previsões e imaginações. «Podemos obter provas desta evolução realizando estudos psicológicos: temos tendência a encontrar uma causa nas coisas. Os nossos cérebros estão programados para perceber as intenções dos outros, mas podemos também identificar uma intencionalidade num círculo que se move num ecrã; se se desloca de um modo concreto, talvez digamos: "Repara, o círculo está a perseguir o quadrado." Assim, nós atribuímos alma inclusivamente às formas abstractas. Trata-se de um instinto muito nosso. Parece-me que é bastante provável que esse instinto, esse desejo de entender as pessoas, terá dado origem ao conceito de alma. E não se trata somente de um desejo de compreender as pessoas que nos rodeiam: na Idade Média julgava-se que até as árvores ou as rochas tinham alma.»
Segundo Carl Zimmer, na Natureza havia almas em toda a parte, porque, sempre que nos apercebemos de algo parecido a uma acção ou mudança, julgamos ver aí uma alma.
Para as culturas antigas, porém, a questão principal neste ponto era averiguar onde é que a alma estava situada. Em relação aos seres humanos, por exemplo, os sacerdotes extraíam o cérebro dos cadáveres quando preparavam a viagem para o além e, no entanto, deixavam intacto o coração porque pensavam que ele era o motor da vida e que, provavelmente, era ali que residia o espírito.
«Sim, no antigo Egipto julgavam que o coração era o centro da vida e, portanto, a alma residia no coração», explicava-nos Zimmer. «Aristóteles também pensava que o coração constituía o centro da vida. Muito pouca gente pensava no cérebro como agora fazemos, como o lugar onde estava situado o nosso sentido do eu, a nossa personalidade, as nossas recordações. O coração, como residência do espírito, foi durante séculos um conceito muito poderoso. Na Idade Média acreditava-se que cada pessoa tinha três almas: uma no fígado e outra no coração; a terceira era a alma racional, a alma do cristianismo, que não estava localizada em nenhum lugar concreto porque se tratava de uma alma imaterial. Assim, o coração continuou a ser considerado como um órgão central no que dizia respeito à alma, daí que existam imagens de Jesus abrindo o seu coração.»
As imagens de Jesus abrindo o seu coração estão relacionadas com essa ideia do homem mostrando-nos o seu verdadeiro eu. O mais recôndito de cada ser estava no coração. Zimmer usa o humor para explicar este conceito: «Jesus não abre o seu crânio e não nos mostra o seu cérebro. Nunca vi uma imagem desse tipo.» Neste aspecto, as ideias culturais são muito persistentes e ainda hoje mantemos frases feitas como «abrir o coração a alguém», «partir o coração», «com o coração nas mãos»; todas elas são uma herança dessa ideia antiga segundo a qual o mais profundo de um ser humano encontra-se, precisamente, no coração.
Até que finalmente, como assinalámos, apareceu Thomas Willis com a sua teoria revolucionária. Ele foi o primeiro a considerar que tudo estava no cérebro. E, de certo modo, referia-se ao facto de que a alma se transforma em carne no cérebro. «Acima de tudo, tratava-se de uma maneira totalmente nova de reflectir sobre a natureza humana», diz Carl Zimmer. «Willis afirmava que a memória, a capacidade de aprender e as emoções eram, na realidade, produto dos "átomos" do cérebro, da química. Ninguém tinha pensado isso antes. Claro está que hoje em dia todos pensamos assim, damo-lo por adquirido; mas quem chegou pela primeira vez a essa ideia foram, no século XVII, Thomas Willis e os seus colegas. Tratava-se de uma ideia revolucionária.»
Willis foi talvez o primeiro a afirmar que a alma é carne e que está no cérebro. Todavia, ele não foi perseguido pelas suas ideias, como ocorreu com outros. Houve grandes perseguições contra filósofos, teólogos e cientistas que professavam ideias parecidas às de Willis. Descartes, por exemplo, teve problemas com a Igreja, e Thomas Hobbes foi perseguido pelos bispos de Inglaterra quando declarou que a mente não era mais que matéria em movimento. O caso de Thomas Willis é diferente, porque ele teve a precaução de deixar espaço para a noção cristã de alma. Segundo Zimmer, o próprio Willis era um cristão tremendamente devoto e não questionava os conceitos básicos do cristianismo. «Queria simplesmente analisar o corpo humano e aprender coisas sobre ele e, pelo caminho, aprender coisas sobre a alma.» De modo que a ele não lhe parecia que pudesse ocorrer qualquer conflito entre anatomia e teologia, e tão-pouco os líderes religiosos de Inglaterra consideraram que as suas ideias e opiniões fossem passíveis de gerar um conflito de interesses. Além disso, Willis era um cientista com muito bons contactos. Um dos seus amigos era o arcebispo de Cantuária, o principal mandatário religioso da Igreja em Inglaterra, de modo que goza¬va de uma certa protecção.
Thomas Willis foi também um pioneiro noutros aspectos. Por exemplo, suspeitou que nós, os seres humanos, temos um cérebro «integrado», ou seja, que herdámos o cérebro dos répteis e que, ao evoluirmos como mamíferos, não nos desfizemos do cérebro dos répteis, antes o mantivemos perfeitamente integrado num cérebro maior. Willis observava o cérebro dos peixes, dos macacos ou das vacas; analisava esses cérebros e estabelecia semelhanças e diferenças. O cérebro humano parecia-se muito com o cérebro de outros animais, e Thomas Willis pensava que, se o cérebro de um animal possuía as mesmas partes que um cérebro humano, então podia ser estabelecida uma correlação entre ambos. Por exemplo, estava convencido de que um cavalo se lembrava de onde é que havia boa comida no prado utilizando para tal as mesmas zonas do cérebro que nós utilizamos para recordar onde está a despensa. A diferença residia basicamente no facto de os seres humanos terem um cérebro maior, capaz de «mais pensamentos». Estas ideias prefiguram na realidade um tipo de pensamento evolucionista, embora Thomas Willis jamais o tivesse expressado desta forma. Para ele era mais uma prova do engenho de Deus como criador, como desenhador do mundo. Carl Zimmer não duvida em afirmar que Willis foi evolucionista duzentos anos antes de Darwin: «Efectivamente, ele proporcionou as provas que Darwin utilizaria, com tanta elegância, para forjar a teoria da evolução duzentos anos depois.»
Há outra peculiaridade fascinante em Thomas Willis... Dizia ele que havia algum tipo especial de espírito que ia do cérebro aos testículos. Como chegou ele a estabelecer uma tal relação? Desde logo, Willis não podia falar de genética, mas sugeriu que havia uma espécie de informação que se transmitia de uma geração para a outra. Zimmer considera que o fascinante de Thomas Willis e da sua época é que simplesmente desconheciam concei¬tos que agora damos por assentes. «Por exemplo, não sabiam nada do ADN. De novo, ele fazia apenas observações e procurava explicações para as observações. Via que as crianças nascem e se parecem com os seus pais, e crescem para se converterem em adultos que se parecem a outros humanos adultos. Pelo que teria de haver algo aí... tinha de existir o que chamaríamos "informação", algo que se transmite para criar outra pessoa. E ocorreu-lhe que o único lugar onde havia ideias era no cérebro.»
Desde logo, se a informação só existe no cérebro e há uma parte dessa informação que passa de pais para filhos sem um motivo aparente, deveria existir uma ligação entre o cérebro e os testículos. «Era evidente: tinha de haver uma ligação.» Willis procurava algo físico, algum tipo de vaso condutor ou algo que fosse directamente do cérebro até aos testículos. Nunca o encontrou. De maneira que esse fracasso deveria ter-lhe dado uma pista de que talvez se tratasse de outro tipo de informação... li o que actualmente chamamos informação genética. Porém, foram necessários séculos de investigação até que se chegasse a esboçar essa noção.
Outra ideia pioneira e fantástica de Willis refere-se à possibilidade de curar mediante processos químicos. Willis estava plenamente convencido de que os fármacos e as manipulações físicas podiam curar todas as doenças. Não tinha nenhuma dúvida a esse respeito. Pelo que, de certo modo, estava a antecipar aquilo que seria a futura neurofarmacologia. «Sim. Creio que, nesse sentido, Thomas Willis desempenhou um papel realmente decisivo», afirma Zimmer. «É algo que costuma passar despercebido: a sua ideia era que se podiam curar todas as doenças mentais através da alteração química da actividade cerebral. Por exemplo, explicava ele que um ataque epiléptico podia ser causado por um descontrolo químico, como a pólvora que acaba por explodir caso não se mantenham certas condições no ambiente envolvente. Tratava-se de uma maneira de raciocinar muito diferente daquela que então imperava, uma época em que as pessoas diziam que os epilépticos estavam possuídos pelo demónio.» E no caso da melancolia, Thomas Willis receitava uma espécie de xarope confeccionado a partir de uma fórmula secreta. E enriqueceu graças às suas tisanas. Administrava-as às pessoas e dizia: «Isto vai curar-te porque modificará a química do teu cérebro.» Na realidade, este é o paradigma com que actualmente trabalhamos: quando alguém toma Prozac ou outro medicamento qualquer, fá-lo com a convicção de que poderá alterar os aspectos fisiológicos nocivos que o estão a afectar e fá-lo também com a convicção de que essa substância química modificará os elementos negativos. «Não é tão difícil transformar as acções do cérebro», explica Zimmer. Na realidade, se bebermos vinho - uma substância química, o nosso cérebro vai modificar notavelmente a sua capacidade de atenção, de percepção e, portanto, acaba por alterar também o nosso carácter. A pergunta é: se actuarmos com substâncias químicas no nosso cérebro, será que o mudaremos do modo que realmente queremos? Serão essas substâncias químicas a melhor maneira de o mudar?
Thomas Willis foi um dos primeiros a abordar as doenças mentais a partir de uma perspectiva farmacológica. Para ele, as perturbações do cérebro podiam ser corrigidas manipulando os «átomos» que o compõem. Até 1630, a melancolia - a que actualmente chamaríamos depressão - era tratada com recurso à astrologia, actuando sobre os quatro humores de Galeno e rezando a Deus.
Willis revolucionou o tratamento desta doença e começou a recomendar, como terapia, um xarope e conversa agradável. E embora os fundamentos fossem os correctos, a eficácia do seu xarope de aço e centopeias trituradas era mais que duvidosa. Segundo ele, este tratamento eliminava os elementos responsáveis pela melancolia: os corpúsculos de sal e sulfureto do sangue.
Durante trezentos anos, a psicofarmácia foi mais um sonho do que uma realidade. Com Sigmund Freud impôs-se a psicanálise e abandonou-se o uso de fármacos para tratar as doenças mentais. O ressurgimento das drogas só se produziu depois da Segunda Guerra Mundial, quando se começou a utilizar a torazina e outros componentes químicos para melhorar determinados achaques. Os neurocientistas descobriram que estas drogas podiam modificar a concentração de dopamina e de outros neurotransmissores. De repente, parecia que era apenas uma questão de ajustar os níveis químicos, exactamente como Willis havia vaticinado.
A fluoxetina, mais conhecida pelo seu nome comercial, Prozac, utiliza-se actualmente para tratar a depressão e a perturbação obsessivo-compulsiva. Quando foi lançado no mercado, em 1990, operou uma revolução na psicofarmácia devido aos seus reduzidos efeitos secundários. Não criava habituação e os efeitos de uma sobredosagem não eram muito graves. A fluoxetina actua sobre o sistema nervoso central; mais concretamente, sobre os níveis de serotonina. Pensa-se que a depressão está relacionada com um desequilíbrio nos níveis desse neurotransmissor, de modo que um nível baixo de serotonina entre os neurónios provoca a depressão. Uma vez que a fluoxetina evita que as células captem serotonina, a quantidade do neurotransmissor entre os neurónios será maior. Como sucede com a maioria dos psicofármacos, desconhece-se o mecanismo de acção preciso desta molécula: a única coisa que podemos observar são os seus efeitos.
Willis ficou rico com os seus tratamentos, mas provavelmente não daria crédito aos valores que estas moléculas mobilizam hoje em dia. Os antidepressivos, por si só, movimentam mais de doze milhões de dólares nos Estados Unidos.
Actualmente existem drogas para uma grande quantidade de perturbações mentais. O modafinil melhora a memória e levanta o ânimo; a ritalina costuma ser utilizada em crianças com défice de atenção e hiperactividade. Há drogas para dormir e drogas para manter-se desperto.
À primeira vista, parece bastante fácil distinguir o que é e onde está a alma. Para começar, alguns animais nem sequer se reconhecem a si mesmos em frente de um espelho. Outros, como os chimpanzés, tal como nós, reconhecem-se e têm consciência de si mesmos. Nós, os seres humanos, possuímos imaginação, emoções e memória: eram estas, segundo o pensamento antigo, as três faculdades da alma.
Mas... onde é que está a alma? Onde é que ela está albergada? Alguns filósofos e teólogos pensavam que a alma estava no coração, e outros, entre eles os primeiros grandes cientistas, opinavam que a alma residia no cérebro. De modo que, ao que parece, a alma fez-se carne.
No entanto, será que com esta simples identificação fica verdadeiramente resolvido o mistério da alma?
A nossa mente é aquilo que somos. Recordações, emoções e experiências acumulam-se no cérebro incrustando-se nas ligações electroquímicas estabelecidas entre os milhões de neurónios que ele contém. A alma ou a psique cabem no pouco mais de quilograma e meio de tecido cerebral, o mesmo que o filósofo Henry More descrevia como «essa desestruturada, gelatinosa e inútil substância». Quase todos os seus colegas pensavam como ele. O que não era invulgar.
Na Inglaterra de meados do século XVII, a alma era um princípio imortal e imaterial que pensa, que sente e que rege o corpo; o cérebro, pelo contrário, parecia uma glândula de aspecto desagradável e de irritante inutilidade. Nesse período da história, alguém inventou a palavra «neurologia». Thomas Willis (1621-1675), juntamente com um grupo de sábios, inaugurou uma nova era: a «era neurocêntrica», na qual nos encontramos hoje, onde o cérebro e a mente são dois conceitos inseparáveis.
Willis estudou ao pormenor a estrutura cerebral e propôs uma nova concepção da mente: para ele, pensamentos e emoções eram tempestades de átomos que ocorriam no cérebro. De alguma maneira, abriu o caminho teórico que haveria de conduzir, vários séculos depois, à descoberta dos neurotransmissores. Se Descartes estava equivocado, se não havia espírito e tudo era matéria, os males da alma seriam necessariamente físicos. Willis propôs então que as perturbações mentais, como a depressão, podiam ser curadas com substâncias químicas e preparados farmacêuticos capazes de restabelecer o equilíbrio do fluido nervoso. Hoje, os fármacos contra a ansiedade ou a depressão, a timidez ou a hiperactividade fazem já parte da nossa cultura.
Formalmente, as teorias de Willis seriam mais parecidas com a alquimia do que com a ciência moderna, porém, é inegável que ele deu os primeiros passos que conduziriam às concepções de «mente» e de «cérebro» que hoje possuímos. Willis inaugurou, há mais de três séculos, a nossa era: a era do cérebro.
Carl Zimmer é um divulgador científico bem conhecido; escreve regularmente nas páginas científicas do New York Times e está a começar a destacar-se como um dos melhores ensaístas no campo da história da neuroanatomia.
Para começar, os paleontólogos asseguram que a ideia da alma parece ser um conceito tardio em relação a outras ideias, como por exemplo a necessidade de fabricar ferramentas. No entanto, é incrível a persistência da ideia de alma, que desde o seu «descobrimento» nunca foi abandonada. De onde nasceu esta ideia? Zimmer assegura que a ideia de alma, ou de algo parecido à alma, surgiu provavelmente há muito tempo, talvez há um milhão de anos, ou há umas quantas centenas de milhares de anos. A ideia de alma evoluiu com o homem e submeteu-se às leis que correspondem aos nossos conceitos, uma ideia à qual aplicámos as nossas previsões e imaginações. «Podemos obter provas desta evolução realizando estudos psicológicos: temos tendência a encontrar uma causa nas coisas. Os nossos cérebros estão programados para perceber as intenções dos outros, mas podemos também identificar uma intencionalidade num círculo que se move num ecrã; se se desloca de um modo concreto, talvez digamos: "Repara, o círculo está a perseguir o quadrado." Assim, nós atribuímos alma inclusivamente às formas abstractas. Trata-se de um instinto muito nosso. Parece-me que é bastante provável que esse instinto, esse desejo de entender as pessoas, terá dado origem ao conceito de alma. E não se trata somente de um desejo de compreender as pessoas que nos rodeiam: na Idade Média julgava-se que até as árvores ou as rochas tinham alma.»
Segundo Carl Zimmer, na Natureza havia almas em toda a parte, porque, sempre que nos apercebemos de algo parecido a uma acção ou mudança, julgamos ver aí uma alma.
Para as culturas antigas, porém, a questão principal neste ponto era averiguar onde é que a alma estava situada. Em relação aos seres humanos, por exemplo, os sacerdotes extraíam o cérebro dos cadáveres quando preparavam a viagem para o além e, no entanto, deixavam intacto o coração porque pensavam que ele era o motor da vida e que, provavelmente, era ali que residia o espírito.
«Sim, no antigo Egipto julgavam que o coração era o centro da vida e, portanto, a alma residia no coração», explicava-nos Zimmer. «Aristóteles também pensava que o coração constituía o centro da vida. Muito pouca gente pensava no cérebro como agora fazemos, como o lugar onde estava situado o nosso sentido do eu, a nossa personalidade, as nossas recordações. O coração, como residência do espírito, foi durante séculos um conceito muito poderoso. Na Idade Média acreditava-se que cada pessoa tinha três almas: uma no fígado e outra no coração; a terceira era a alma racional, a alma do cristianismo, que não estava localizada em nenhum lugar concreto porque se tratava de uma alma imaterial. Assim, o coração continuou a ser considerado como um órgão central no que dizia respeito à alma, daí que existam imagens de Jesus abrindo o seu coração.»
As imagens de Jesus abrindo o seu coração estão relacionadas com essa ideia do homem mostrando-nos o seu verdadeiro eu. O mais recôndito de cada ser estava no coração. Zimmer usa o humor para explicar este conceito: «Jesus não abre o seu crânio e não nos mostra o seu cérebro. Nunca vi uma imagem desse tipo.» Neste aspecto, as ideias culturais são muito persistentes e ainda hoje mantemos frases feitas como «abrir o coração a alguém», «partir o coração», «com o coração nas mãos»; todas elas são uma herança dessa ideia antiga segundo a qual o mais profundo de um ser humano encontra-se, precisamente, no coração.
Até que finalmente, como assinalámos, apareceu Thomas Willis com a sua teoria revolucionária. Ele foi o primeiro a considerar que tudo estava no cérebro. E, de certo modo, referia-se ao facto de que a alma se transforma em carne no cérebro. «Acima de tudo, tratava-se de uma maneira totalmente nova de reflectir sobre a natureza humana», diz Carl Zimmer. «Willis afirmava que a memória, a capacidade de aprender e as emoções eram, na realidade, produto dos "átomos" do cérebro, da química. Ninguém tinha pensado isso antes. Claro está que hoje em dia todos pensamos assim, damo-lo por adquirido; mas quem chegou pela primeira vez a essa ideia foram, no século XVII, Thomas Willis e os seus colegas. Tratava-se de uma ideia revolucionária.»
Willis foi talvez o primeiro a afirmar que a alma é carne e que está no cérebro. Todavia, ele não foi perseguido pelas suas ideias, como ocorreu com outros. Houve grandes perseguições contra filósofos, teólogos e cientistas que professavam ideias parecidas às de Willis. Descartes, por exemplo, teve problemas com a Igreja, e Thomas Hobbes foi perseguido pelos bispos de Inglaterra quando declarou que a mente não era mais que matéria em movimento. O caso de Thomas Willis é diferente, porque ele teve a precaução de deixar espaço para a noção cristã de alma. Segundo Zimmer, o próprio Willis era um cristão tremendamente devoto e não questionava os conceitos básicos do cristianismo. «Queria simplesmente analisar o corpo humano e aprender coisas sobre ele e, pelo caminho, aprender coisas sobre a alma.» De modo que a ele não lhe parecia que pudesse ocorrer qualquer conflito entre anatomia e teologia, e tão-pouco os líderes religiosos de Inglaterra consideraram que as suas ideias e opiniões fossem passíveis de gerar um conflito de interesses. Além disso, Willis era um cientista com muito bons contactos. Um dos seus amigos era o arcebispo de Cantuária, o principal mandatário religioso da Igreja em Inglaterra, de modo que goza¬va de uma certa protecção.
Thomas Willis foi também um pioneiro noutros aspectos. Por exemplo, suspeitou que nós, os seres humanos, temos um cérebro «integrado», ou seja, que herdámos o cérebro dos répteis e que, ao evoluirmos como mamíferos, não nos desfizemos do cérebro dos répteis, antes o mantivemos perfeitamente integrado num cérebro maior. Willis observava o cérebro dos peixes, dos macacos ou das vacas; analisava esses cérebros e estabelecia semelhanças e diferenças. O cérebro humano parecia-se muito com o cérebro de outros animais, e Thomas Willis pensava que, se o cérebro de um animal possuía as mesmas partes que um cérebro humano, então podia ser estabelecida uma correlação entre ambos. Por exemplo, estava convencido de que um cavalo se lembrava de onde é que havia boa comida no prado utilizando para tal as mesmas zonas do cérebro que nós utilizamos para recordar onde está a despensa. A diferença residia basicamente no facto de os seres humanos terem um cérebro maior, capaz de «mais pensamentos». Estas ideias prefiguram na realidade um tipo de pensamento evolucionista, embora Thomas Willis jamais o tivesse expressado desta forma. Para ele era mais uma prova do engenho de Deus como criador, como desenhador do mundo. Carl Zimmer não duvida em afirmar que Willis foi evolucionista duzentos anos antes de Darwin: «Efectivamente, ele proporcionou as provas que Darwin utilizaria, com tanta elegância, para forjar a teoria da evolução duzentos anos depois.»
Há outra peculiaridade fascinante em Thomas Willis... Dizia ele que havia algum tipo especial de espírito que ia do cérebro aos testículos. Como chegou ele a estabelecer uma tal relação? Desde logo, Willis não podia falar de genética, mas sugeriu que havia uma espécie de informação que se transmitia de uma geração para a outra. Zimmer considera que o fascinante de Thomas Willis e da sua época é que simplesmente desconheciam concei¬tos que agora damos por assentes. «Por exemplo, não sabiam nada do ADN. De novo, ele fazia apenas observações e procurava explicações para as observações. Via que as crianças nascem e se parecem com os seus pais, e crescem para se converterem em adultos que se parecem a outros humanos adultos. Pelo que teria de haver algo aí... tinha de existir o que chamaríamos "informação", algo que se transmite para criar outra pessoa. E ocorreu-lhe que o único lugar onde havia ideias era no cérebro.»
Desde logo, se a informação só existe no cérebro e há uma parte dessa informação que passa de pais para filhos sem um motivo aparente, deveria existir uma ligação entre o cérebro e os testículos. «Era evidente: tinha de haver uma ligação.» Willis procurava algo físico, algum tipo de vaso condutor ou algo que fosse directamente do cérebro até aos testículos. Nunca o encontrou. De maneira que esse fracasso deveria ter-lhe dado uma pista de que talvez se tratasse de outro tipo de informação... li o que actualmente chamamos informação genética. Porém, foram necessários séculos de investigação até que se chegasse a esboçar essa noção.
Outra ideia pioneira e fantástica de Willis refere-se à possibilidade de curar mediante processos químicos. Willis estava plenamente convencido de que os fármacos e as manipulações físicas podiam curar todas as doenças. Não tinha nenhuma dúvida a esse respeito. Pelo que, de certo modo, estava a antecipar aquilo que seria a futura neurofarmacologia. «Sim. Creio que, nesse sentido, Thomas Willis desempenhou um papel realmente decisivo», afirma Zimmer. «É algo que costuma passar despercebido: a sua ideia era que se podiam curar todas as doenças mentais através da alteração química da actividade cerebral. Por exemplo, explicava ele que um ataque epiléptico podia ser causado por um descontrolo químico, como a pólvora que acaba por explodir caso não se mantenham certas condições no ambiente envolvente. Tratava-se de uma maneira de raciocinar muito diferente daquela que então imperava, uma época em que as pessoas diziam que os epilépticos estavam possuídos pelo demónio.» E no caso da melancolia, Thomas Willis receitava uma espécie de xarope confeccionado a partir de uma fórmula secreta. E enriqueceu graças às suas tisanas. Administrava-as às pessoas e dizia: «Isto vai curar-te porque modificará a química do teu cérebro.» Na realidade, este é o paradigma com que actualmente trabalhamos: quando alguém toma Prozac ou outro medicamento qualquer, fá-lo com a convicção de que poderá alterar os aspectos fisiológicos nocivos que o estão a afectar e fá-lo também com a convicção de que essa substância química modificará os elementos negativos. «Não é tão difícil transformar as acções do cérebro», explica Zimmer. Na realidade, se bebermos vinho - uma substância química, o nosso cérebro vai modificar notavelmente a sua capacidade de atenção, de percepção e, portanto, acaba por alterar também o nosso carácter. A pergunta é: se actuarmos com substâncias químicas no nosso cérebro, será que o mudaremos do modo que realmente queremos? Serão essas substâncias químicas a melhor maneira de o mudar?
Thomas Willis foi um dos primeiros a abordar as doenças mentais a partir de uma perspectiva farmacológica. Para ele, as perturbações do cérebro podiam ser corrigidas manipulando os «átomos» que o compõem. Até 1630, a melancolia - a que actualmente chamaríamos depressão - era tratada com recurso à astrologia, actuando sobre os quatro humores de Galeno e rezando a Deus.
Willis revolucionou o tratamento desta doença e começou a recomendar, como terapia, um xarope e conversa agradável. E embora os fundamentos fossem os correctos, a eficácia do seu xarope de aço e centopeias trituradas era mais que duvidosa. Segundo ele, este tratamento eliminava os elementos responsáveis pela melancolia: os corpúsculos de sal e sulfureto do sangue.
Durante trezentos anos, a psicofarmácia foi mais um sonho do que uma realidade. Com Sigmund Freud impôs-se a psicanálise e abandonou-se o uso de fármacos para tratar as doenças mentais. O ressurgimento das drogas só se produziu depois da Segunda Guerra Mundial, quando se começou a utilizar a torazina e outros componentes químicos para melhorar determinados achaques. Os neurocientistas descobriram que estas drogas podiam modificar a concentração de dopamina e de outros neurotransmissores. De repente, parecia que era apenas uma questão de ajustar os níveis químicos, exactamente como Willis havia vaticinado.
A fluoxetina, mais conhecida pelo seu nome comercial, Prozac, utiliza-se actualmente para tratar a depressão e a perturbação obsessivo-compulsiva. Quando foi lançado no mercado, em 1990, operou uma revolução na psicofarmácia devido aos seus reduzidos efeitos secundários. Não criava habituação e os efeitos de uma sobredosagem não eram muito graves. A fluoxetina actua sobre o sistema nervoso central; mais concretamente, sobre os níveis de serotonina. Pensa-se que a depressão está relacionada com um desequilíbrio nos níveis desse neurotransmissor, de modo que um nível baixo de serotonina entre os neurónios provoca a depressão. Uma vez que a fluoxetina evita que as células captem serotonina, a quantidade do neurotransmissor entre os neurónios será maior. Como sucede com a maioria dos psicofármacos, desconhece-se o mecanismo de acção preciso desta molécula: a única coisa que podemos observar são os seus efeitos.
Willis ficou rico com os seus tratamentos, mas provavelmente não daria crédito aos valores que estas moléculas mobilizam hoje em dia. Os antidepressivos, por si só, movimentam mais de doze milhões de dólares nos Estados Unidos.
Actualmente existem drogas para uma grande quantidade de perturbações mentais. O modafinil melhora a memória e levanta o ânimo; a ritalina costuma ser utilizada em crianças com défice de atenção e hiperactividade. Há drogas para dormir e drogas para manter-se desperto.
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